texto e edição: Cilmara Bedaque
fotos: Cilmara Bedaque e Marcelo Carneiro
Vamos à segunda parte da entrevista que fiz com Marcelo Carneiro, dono da Cervejaria Colorado, conhecida por todos pelo mascote do ursinho. Não leia esta segunda parte sem ter lido a primeira para captar a fluidez do papo.
Cilmara – Você falou que compra quantas toneladas de rapadura atualmente?
Marcelo – Uma tonelada.
Cilmara – Quantos litros você produz hoje e quais são os planos pra 2015 porque eu sei que você está expandindo a fábrica… Aí na mesma pergunta, tudo junto, hoje a empresa não é mais familiar, você deu uma profissionalizada na empresa. Fala sobre tudo isso, Marcelo…
Marcelo – A Colorado faz de 150 a 200 mil litros num mês bom. Nós terceirizamos a produção em mais duas indústrias, a Cevada Pura e a Lund. Tudo isso tem uma história bacana e eu sou orgulhoso dela. Por que eu terceirizo na Cevada Pura? O Alexandre, dono da Cevada Pura, foi o primeiro estagiário da Colorado. A Colorado é também uma incubadora de outras empresas. O Rodrigo, da Invicta, começou como motorista da Colorado. Foi prático, cervejeiro da Colorado, hoje tem sua própria cervejaria. A Lund é uma cervejaria bem pequena de Ribeirão, tem os tanques que a gente precisa pra algumas tiragens e a gente faz com eles, também porque são da nossa cidade. Em Ribeirão Preto a gente tem uma cena cervejeira muito bacana porque todo mundo se ajuda. Às vezes falta fermento, ou falta garrafa e a gente tenta sempre, dentro do possível, se ajudar um ao outro. Estamos sempre nos encontrando, bebendo juntos. É muito importante que nas outras cenas cervejeiras, porque a gente tem outros focos, tem Curitiba, tem Minas Gerais, é importante haver esse entendimento. E eu acho que isso está acontecendo nas outras cidades do país.
Quanto a se profissionalizar, não tem jeito, gente, eu fico falando isso. Ficamos muito contentes de ganhar medalha, mas mais bacana é você conseguir fazer uma cerveja com repetibilidade todo o dia, entregar, pagar os seus impostos… Isso é uma coisa dura de dizer porque é muito fácil ficar falando que vivemos num país injusto… Eu comecei a me rebelar contra os impostos, mas eu vi que quando você não paga, você não tem direito nenhum. Então comecei aos trancos e barrancos a pagar o meu, eu meio que fui até voluntário para colocar o SICOBE na minha fábrica e isso me custou muito, mas por outro lado me fez aprender, me obrigou a me profissionalizar, porque quando você tem o SICOBE você está pagando imposto até pela garrafa quebrada, por todos os seus amadorismos.
dica para o leitor: SICOBE é um sistema que a Receita Federal coloca na fábrica que fotografa cada garrafa e manda para a própria Receita online. É um sistema de controle que a indústria de armas no Brasil não tem.
Marcelo – Eu achava uma coisa totalmente orwelliana, mas se for um instrumento de justiça não me incomoda ter. A gente foi falar com o governo, quando eu era presidente da ABRACERVA (Associação Brasileira de Cerveja Artesanal), fui falar pelos menores e pelos maiores que eu. Estávamos conversando e o governo foi bem claro: se vocês não se legalizarem não vai ter conversa, não vai ter diminuição de imposto, vocês precisam ser vistos como pessoas sérias. Aí a gente propôs para eles um sistema em que o produtor que faz até 100 mil litros de cerveja vai ter um selo na garrafa, igual tem a cachaça e o vinho. Até 100 mil litros, que é a grande maioria do mercado. E os maiores vão ter o SICOBE.
Cilmara – Essa é a pergunta que eu ia fazer para você na seqüência. O mercado de artesanal está crescendo em todo o mundo. Agora, eu sei também que em vários lugares, sei mais dos Estados Unidos, existe uma isenção de impostos fantástica até o primeiro milhão de litros.
Marcelo – Lá é muito mais do que isso. O primeiro milhão de litros foi o que a gente conseguiu aqui. O primeiro milhão tem 10% de abatimento, o que ainda é pouco. Lá eles têm proteção até 3% do mercado e ninguém ainda chegou em 3%. A Samuel Adams, que é a maior micro cervejaria americana, tem 2 virgula alguma coisa do mercado. E é a maior cervejaria puramente americana. Isso é para mostrar que todos os governos estão preocupados com esse fenômeno da concentração do mercado cervejeiro. Por quê? Eu não quero assim criticar só a desigualdade, eu não sou contra a desigualdade desde que ela sirva a um bem comum. Essa fala não é minha, é do Thomas Piketty, esse cara que escreveu aí o “Capital no século 21”. Tem que haver um espaço para a livre iniciativa. Porque senão é ruim para o agricultor que está lá embaixo, é ruim para a grande indústria também porque ela acaba sucumbindo diante do peso dela mesma. Ela acaba mal vista. Ela é culpada de todos os males do álcool, ela não pode produzir, por exemplo, todos esses bens culturais que as pequenas podem vir a criar. A cerveja tem que ser equiparada ou fazer um trabalho melhor do que o do vinho. Eu acho que o vinho é mais bem visto como produto. Nós, pequenos, temos que trabalhar também nessa parte de responsabilidade social e alçar bandeiras maiores, como mobilidade urbana e embates intelectuais maiores do que a grande indústria.
Cilmara – Você foi o primeiro presidente da ABRACERVA que, finalmente conseguiu se formar. Muito se lutou para que ela conseguisse existir até.
Marcelo – Isso
Cilmara – Vocês chegaram a Brasília e começaram a argumentar as leis que seriam aprovadas ou não. Eu queria que você contasse pra gente qual foi a vitória e qual foi a maior derrota da associação e qual a grande dificuldade que você vê na aprovação das idéias que a associação defende lá dentro do governo
Marcelo – A maior vitória foi, nessa legislação que esta para vir, ser reconhecido finalmente como um animal diferente. Não é possível que o governo não estivesse vendo que no Brasil tem um mercado só com quatro empresas. E as que fazem cerveja especial têm por volta de 1% deste mercado. Aí tem 300 empresas, 100% nacionais, sem motor de banco, que são iniciativa da classe media brasileira, que justamente é o pessoal que montou, ao longo dos últimos anos, e que quer ter acesso. Não quer só consumir, quer produzir também.
Cilmara – Empregam quantas pessoas, Marcelo, você tem essa noção?
Marcelo – Muito mais pessoas por hectolitro do que uma grande cervejaria. Eu não tenho essa noção exata.
Cilmara – Porque é menos automatizada?
Marcelo0 – Exatamente, eu posso falar por mim, eu emprego 70 famílias. Se for extrapolar a Colorado para as grandes, é muito, muito, muito mais. Vai alem da questão do imposto. Vai para a questão da livre escolha do consumidor, o consumidor tem direito de escolher o que quer beber. A classe média tem direito a querer ter a sua indústria. Por que o cara que tem seu dinheirinho pode abrir uma padaria, mas não pode abrir uma cervejaria? Porque há uma legislação que foi desenhada só pros grandes. São exatamente os mesmos ingredientes. Não tem lógica. E somos nós que podemos quebrar a hegemonia que existe no consumo do álcool se a gente trabalhar direito.
Cilmara – E qual foi a maior derrota?
Marcelo – A maior derrota é as pessoas que me perguntam qual é o maior concorrente da Colorado. É o mesmo, é o maior concorrente de todas as pequenas. É a concorrência da ignorância. É as pessoas acharem que a cerveja e uma coisa monolítica, que não tem nada por trás da cerveja, que só tem gente querendo ganhar dinheiro. Que a cerveja não tem história, que a cerveja é uma bebida amarela com um pouco de malte e só gente ambiciosa por detrás. Não, a cerveja tem muita riqueza por trás, a cerveja tem muita história. A cerveja não estaria do lado da humanidade há oito mil anos se não tivesse essa vantagem. Até às pessoas que têm uma objeção religiosa quanto ao consumo, eu queria lembrar a essas pessoas que o primeiro milagre que Jesus Cristo fez foi multiplicar a bebida alcoólica. É lógico que aqui a gente não está defendendo o excesso, existem as famílias que são destruídas pelo excesso de álcool… A gente está defendendo que a cerveja aproxima as pessoas. Mas isso acontece com todas as coisas, às vezes você dá um carro para uma pessoa e ela fica se sentindo a rainha do mundo e atropela outra. Então vamos proibir os carros? Vamos olhar as coisas sob a perspectiva apropriada.
Na Europa, vários mosteiros fazem cerveja e os monges bebem.
Cilmara – Tive o prazer de visitá-los com a Vange, foi ótimo. Inclusive os ciclistas bebem. Era muito engraçado, a gente na Bélgica, em um restaurante de mosteiro, de repente uma turma de ciclistas, todos paramentados, entram, tomam uma tacinha e continuam o passeio de domingo, a viagem que eles estavam fazendo…
Marcelo – A cerveja não iria estar com a gente há tanto tempo se não fizesse bem. Eu li um livro francês que um médico compara todas as causas possíveis de morte em gente que bebe e em gente que é abstêmia. E provava que os abstêmios morrem mais de causas diversas tudo, inclusive, infelicidade, tensão, stress, suicídio, que os que bebem moderadamente.
Cilmara – A Colorado vai crescer em 2015? Vai ter fábrica nova?
Marcelo – Vai ter fábrica nova. Crescer é importante, mas crescer sem perder a ternura. (risos)
Cilmara – vocês vão duplicar a produção? Quais são os números?
Marcelo – Olha eu não sei, porque a gente não tem motor de banco, não sou um grande financista. Vou crescer na medida em que a minha grana der. Eu agora tenho espaço, disso estou gostando muito. Vou ter meu poço de água próprio, estou muito contente com isso, lá em Ribeirão.
Cilmara – Isso é ótimo, porque é uma água boa também, né?
Marcelo – Vem do Aqüífero Guarani direto. Estou numa pegada ecológica também na fábrica. Enfim, estou muito animado porque fiquei muitos anos nesse lugar pequeno, batalhando, muita gente lançando coisa nova e a Colorado ali, grande no nome, mas pequenininha na fábrica e agora esse ano, puf, a gente vai ter espaço de novo!
Cilmara – Pra 2015 então continuam os quatro rótulos fixos, a Indica…
Marcelo – A Appia, a Demoiselle, a Cauim e a Vixnu que agora entrou também nas fixas. A gente vai fazer algumas colaborativas e tal. A Colorado não lança muitos rótulos. Ela tem uma coisa diferente, que ela acha que cada cerveja é como se fosse um filho. Isso é uma filosofia nossa, combinada com o Randy, desde o começo. Ele disse “cada cerveja tem que ter um nome e uma história” e a gente acredita nisso. A gente não lança muito, somos um clássico das cervejarias.
Cilmara (rindo) – São os Paralamas das artesanais…
Marcelo – Isso. A gente não lança muita coisa, mas tenta lançar coisas boas.
Cilmara – Para o ano virão algumas sazonais então. Não necessariamente as mesmas deste ano?
Marcelo – Está vindo a colaborativa que a gente fez com a Tupiniquim e a norueguesa Nogne Ø, que tá muito boa, uma Saison, a Ybá-Ia, com adição de uvaia. Com a St. Feuillien, lá da Bélgica, fizemos outra Saison, a Marguerite que, inclusive, homenageia a contribuição feminina para a história da cerveja. Isso tudo pra gente é um aprendizado porque a gente está querendo fazer a nossa própria Saison. Usamos esse conhecimento dos outros porque mais tarde a gente vai fazer a nossa. Talvez ela entre em linha, talvez ela seja uma sazonal como o próprio nome diz. O futuro vai dizer…
E aí continuamos nosso papo, mas adentramos outros assuntos que não têm nada a ver com a pauta desta entrevista. E, dessa maneira, pude conhecer mais demoradamente e entender porque Marcelo é um dos lideres do movimento da cerveja artesanal brasileira. Pude ver também como a experiência nos transforma em dinos, mas com inteligência e mobilidade a renovação está na virada da esquina. Longa vida a Colorado!
P.S.: No meio cervejeiro todos sabem que a Ambev está cercando as cervejarias de Ribeirão Preto. A gigante quer ter uma base nesta região que é rica em tradição e em fábricas importantes. O Lupulinas bebe e observa… ;)